Ei, psicólogo! Você não é obrigado a atender uma pessoa

mulher com a cabeça abaixada, apoiada nas mãos, segurando um óculos, diante do computador. Sentindo-se cansado.

É comum associarmos ao psicólogo uma imagem de acolhimento por vezes até demasiada. Isso se reflete em um imaginário de que qualquer um em qualquer lugar possui, por exemplo, o direito de fazer com que este profissional dê alguma opinião, conselho, ou coisa do gênero.

Como aquela famigerada situação em que alguém nos pergunta sobre nossa profissão e, ao dizer que somos psicólogos, abre-se uma porta infinita de perguntas e bordões, do tipo: “você está me analisando, não é?”.

Situações desconfortáveis como esta convocam em nós, profissionais da Psicologia, uma atitude de impor certos limites. Contudo, não é esse o único lugar em que o psicólogo é convidado a exercitar essa habilidade, existem outras situações que podem nos deixar desorientados quanto ao nosso papel, sobretudo aquelas que ocorrem dentro do setting.

A pergunta que fazemos aqui é: será que o psicólogo é obrigado a acolher todas as demandas que surgem na clínica? Ou, ainda: será que um psicólogo é obrigado a atender uma pessoa?

O que diz o Conselho de Psicologia?

Para refletirmos sobre essa questão, teremos por base o Código de Ética do Psicólogo, cujo objetivo é orientar a nossa prática e fomentar a reflexão crítica para situações como essas. No segundo item do primeiro artigo, é apontado como um dever fundamental do psicólogo “assumir responsabilidades profissionais somente por atividades para as quais esteja capacitado pessoal, teórica e tecnicamente”

Como podemos observar, o Conselho nos orienta a analisar nossas capacidades pessoais, teóricas e técnicas. O que isso quer dizer?

Teoria e técnica

Intuitivamente costumamos compreender tais conceitos, mas para não restar dúvidas vamos reforçá-los aqui. 

A teoria está relacionada à explicação da realidade por um determinado ponto de vista, e também à sistematização através de conceitos, correlações, leis, princípios, etc. Quando uma teoria é utilizada, significa que ela passou por um processo de comprovação científica. Podemos pensar aqui em algumas teorias dentro do conhecimento psicológico: a teoria do trauma, teoria dos complexos, teoria do sistema familiar. Inclui-se aqui também as abordagens: Psicanálise, Junguiana, Sistêmica, Psicodrama. A própria Psicologia pode ser compreendida como uma teoria que abarca as outras teorias citadas anteriormente.

A técnica, por sua vez, está ligada a uma parte mais prática de uma ciência, a um processo que pode ser executado. Por exemplo: a psicoterapia (e seus vários segmentos – familiar, em grupo, de casal), a avaliação psicológica (como um processo e os testes específicos). Ou até ferramentas que utilizamos em nossos trabalhos: análise dos sonhos, associação livre, etc.

Resumindo, devemos lembrar que a teoria está mais relacionada ao saber e a técnica ao fazer. Contudo, definitivamente, uma não funciona dissociada da outra.

Agora, voltando ao ponto principal. Quando o Conselho diz que devemos avaliar nossa capacidade teórica e técnica, significa que precisamos analisar, a partir da demanda trazida, se temos conhecimentos e ferramentas suficientes para atuar naquele caso.

Quanto à questão teórica, um paciente pode, por exemplo, buscar especificamente por uma abordagem ou até mesmo trazer uma queixa na qual nunca tivemos acesso, o que não é difícil já que a clínica conta com uma extensa variedade de fenômenos diferentes. 

No que diz respeito aos atributos técnicos, um paciente pode nos buscar pedindo por avaliação psicológica, por um análise no divã, ou por sessões de psicoterapia em libras. Todos esses exemplos envolvem uma prática, portanto estão ligados aos atributos técnicos. 

Em ambas as situações, cabe ao psicólogo avaliar se ele se compreende apto para acolher esse caso considerando sua disponibilidade para buscar conhecimento naquela área, a gravidade da situação, etc. E, caso a resposta seja negativa, encaminhar o paciente para um profissional capacitado.

E sobre a capacidade pessoal?

Talvez o julgamento mais difícil seja saber se estamos capacitados pessoalmente para atender uma pessoa. Aqui podemos pensar sobre acolher temas que são sensíveis para nós e que podem comprometer o nosso trabalho. Uma ilustração possível talvez possa ser: uma psicóloga que vivenciou uma experiência de relação abusiva, e recebe na clínica um homem que possui um perfil autoritário e violento que pode despertar nessa profissional emoções projetivas.

É, de fato, uma linha tênue e as próprias orientações do Conselho não são categóricas. Espera-se que saibamos quais são nossas limitações e que as respeitemos para não comprometer o nosso trabalho.

É válido lembrar que mesmo que estejamos capacitados nesses 3 aspectos supracitados, no decorrer do processo de psicoterapia podem surgir algumas dificuldades teóricas, técnicas ou pessoais sobre a demanda do seu paciente. Por vezes essa avaliação inicial pode não ser tão precisa, já que o vínculo não se desenvolve de um dia para outro.

Diante dessa situação, é válido considerar um exercício de sempre reavaliar nossa relação com o paciente e olhar para esses 3 aspectos. Além do mais, não podemos esquecer do tripé que sustenta a boa prática de qualquer psicólogo: estudo, supervisão e psicoterapia. Esses serão os responsáveis por colaborar na consciência desse processo, no desenvolvimento do sentimento de capacitação bem como no reconhecimento e ação a partir dos prórios limites.

Em conclusão, nenhum psicólogo é obrigado a atender uma pessoa se este não se perceber apto a realizar um bom trabalho. A postura ética aqui é justamente estarmos conscientes de nossas bordas, acolher o que está dentro e encaminhar o que está fora.

Se após essas avaliações, você ainda estiver com dúvidas sobre ser ou não apto para atender algum caso, lembramos que os psicólogos possuem um órgão responsável por orientar o nosso trabalho, que são os Conselhos Regionais de Psicologia. Normalmente conseguimos agendar um horário para pedir orientações a respeito da nossa prática clínica. Para encontrar o telefone ou e-mail do Conselho de sua região, clique aqui.

Referências

CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Código de Ética Profissional do Psicólogo. Resolução CFP nº 010/05. Brasília, agosto de 2005.

FERREIRA, A. B. H. Dicionário Aurélio da língua portuguesa. Curitiba: Editora Positivo, 2010.

MINAYO, M. C. S. (Org.). Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes, 2002. 

MARCONI, M. A., LAKATOS, E. M. (2019). Metodologia científica: ciência e conhecimento, métodos científicos, teoria, hipóteses e variáveis, metodologia jurídica. (7a ed.). São Paulo: Atlas.

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